terça-feira, 17 de junho de 2014

Reportagem sobre residência na revista Radis (out/2013)


Matéria veiculada na revista Radis, nº 133, de Outubro de 2013!Link para matéria e revista online: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/133

Mergulho na vivência e na (dura) realidade

Certificação inadequada, carga horária excessiva e falta de supervisão refletem ausência de política nacional para os programas, que retomam lutas históricas pelo SUS
Elisa Batalha

São quatorze as profissões reconhecidas oficialmente como pertencendo à área da Saúde. Como forma de complementar os anos na faculdade, especializar-se e adquirir vivência na profissão, os recém-formados nessas categorias muitas vezes buscam programas de residência uni ou multiprofissionais (que integram diferentes profissões em um mesmo programa), passam a conhecer a realidade dos serviços de saúde e, também, a participar de uma série de lutas: os programas de residências em Saúde vivem um momento definidor e vêm sendo debatidos em fóruns diversos, como o 2º Encontro Nacional de Residências em Saúde, evento pré-Abrascão, em dezembro de 2012, e no 4º Encontro Estadual de Residências do Estado do Rio de Janeiro, realizado em agosto, na capital fluminense. “Falta uma política nacional para as residências”, resume Maria Alice Pessanha de Carvalho, coordenadora da Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Segundo a pesquisadora, uma reivindicação histórica é a certificação específica. Atualmente, a residência da Ensp, por exemplo, tem carga horária de 60 horas semanais e duração total de 5.660 horas (dois anos). Ao final do programa, no entanto, o certificado do egresso é de especialização lato sensu, equivalente ao de um curso de 360 horas. Já o médico, ao completar a residência, obtém título de especialista. Segundo o site do Ministério da Educação, a residência médica é considerada o “padrão ouro” da especialização.
Para Mário Jorge Sobreira da Silva, coordenador da Comissão de Residência Multiprofissional do Instituto Nacional do Câncer (Inca), que envolve oito profissões, essa diferença de status precisa ser resolvida e é parte da consolidação do SUS. “A certificação é muito importante. Como vamos inserir esses profissionais no mercado de trabalho?”, questionou.
O problema atinge mais de 4,2 mil profissionais, número de residentes na modalidade multiprofissional e em área profissional de Saúde (todas as profissões, exceto residências médicas), no Brasil, em 2012: nutricionistas, fonoaudiólogos, psicólogos, entre outras categorias profissionais da Saúde — além de programas já consolidados no campo da Enfermagem.
Quanto às residências médicas, foram abertas em todo o país 10 mil vagas para novos residentes em 2013, das quais 8% em Medicina de Família e Comunidade. O Ministério da Saúde anunciou em junho ampliação do financiamento de bolsas para as residências uni e multiprofissionais, em áreas consideradas prioritárias.
No Brasil, a residência médica teve início em 1940 e foi regulamentada em 1977 pela lei 80.281, que criou a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). A residência em Enfermagem foi iniciada na década de 1960, no Hospital Infantil do Morumbi, em São Paulo, conforme registra relatório do Ministério da Saúde sobre o tema. A primeira residência multiprofissional do Brasil nasceu no âmbito da Secretaria de Estado de Saúde do Rio Grande do Sul, como um desdobramento da primeira residência em Medicina Comunitária do país, criada no estado em 1976, na Unidade Sanitária de São José do Murialdo, periferia de Porto Alegre. As residências nas demais profissões da Saúde também começaram a ser oferecidas no final da década de 1970, sem, no entanto, uma regulamentação específica, que só veio em 2005, com a Lei Federal 11.129.

Cadastramento
Outro problema apontado pelos coordenadores das residências é o sistema de cadastramento. “O cadastro no Sistema da Comissão de Residência Multiprofissional em Saúde  (SisCNRMS), tal como está hoje, engessa os programas. Para Maria Alice, o cadastro exige padronização, “É como se fosse uma camisa de força”, compara. Ela explica que para se fazer o registro da residência, é obrigatório que o programa esteja vinculado a uma instituição de ensino, o que exclui as residências em hospitais e unidades  independentes. “Se você entende o SUS como SUS-escola, não precisa haver relação da residência com uma instituição de ensino obrigatoriamente”, considera Maria Alice. “Se continuar essa lógica, muitos programas tradicionais não serão credenciados”, observou Ricardo Burg Ceccin, professor de Educação em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Comissão de Residência Multiprofissional em Saúde (Coremu/UFRGS), durante o 2º Encontro de Residências em Saúde, realizado em  Porto Alegre em novembro de 2012. “É uma burocracia que impede inclusive que se tenha acesso à realidade dos programas, não é feito um cadastro fiel do que existe”, argumentou.

Mão de obra
No encontro de agosto, coordenadores e residentes discutiram mais um problema enfrentado pelos programas: a falta de preceptores (profissionais responsáveis pela supervisão direta das atividades práticas realizadas pelos residentes nos serviços de saúde). “Residente não é para assumir o serviço”, alertou o assistente social Caio Schaffer, um dos organizadores do encontro, apontando que, entre os residentes que estavam nos grupos de trabalho do evento, a maioria já assumira o serviço em seus postos. “A falta de preceptores é uma questão crítica. É grave o residente substituir o servidor”, considerou.
“O residente ganha uma bolsa, sem direitos trabalhistas, e o grupo se renova a cada dois anos”, testemunhou Caio, que está no segundo ano da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e comunidade do Hospital São Francisco de Assis, da UFRJ. A carga horária de 60 horas, segundo ele, é muito extensa e praticamente toda utilizada no serviço, não restando tempo para a dedicação a avaliação de casos, por exemplo.
“Temos dificuldade em conseguir preceptores e até coordenadores para nos substituir, porque o preceptor não é valorizado, não tem remuneração específica para a função. Não tem incentivo financeiro, nem tempo para ser preceptor. Poucos são os programas que têm curso de formação de preceptores. É sempre nas brechas de tempo”, relata Antônio Macedo de Figueiredo, da Comissão de Residência Multiprofissional em Saúde da Universidade Federal Fluminense (UFF), que atua no Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói (RJ). Ele explica, ainda, que a exigência de titulação acadêmica para preceptores tem atrapalhado a composição do quadro.
“Em alguns lugares, o residente é apenas mão de obra, e há uma precarização. Em outros, se consegue que a residência provoque reflexões não só para o residente, mas também para a própria equipe que o recebe. Nesses casos, ela funciona como uma educação permanente”, analisa a enfermeira Daniela Dallegrave, que tem as residências em Saúde como objeto de estudo da sua pesquisa de doutorado em Educação pela UFRGS.  “O que diferencia a residência do trabalho por si só é a reflexão sobre a prática profissional”, afirma.
Para Daniela, a residência tem potencial para provocar outras formas de aprendizagem. “É preciso respeitar esse tempo do residente para o convívio com profissionais de outras áreas, para o trabalho em equipe. A residência vai também suprir deficiências da graduação”, considera. Ela observa que muitos egressos das residências estão sendo absorvidos pela gestão, quando o propósito original da residência é formar para o serviço. “A formação para o SUS não é necessariamente a formação de gestores”, diz.
Passar por um programa de residência pode aumentar a empregabilidade do profissional, ressalta Daniela, observando que a falta de certificação específica atrapalha esse acesso ao trabalho. “Na hora de realizar um concurso público, o egresso fica dependendo de o seu curso estar mencionado diretamente no edital”, aponta.  

Furar a blindagem
Apesar dos problemas, os movimentos para enfrentá-los assumem papel crucial na militância pelo SUS, avalia a psicóloga Paula Cerqueira (ver entrevista abaixo), coordenadora da Residência em Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. “O residente não pode passar dois anos no programa e sair dizendo que nada tem jeito, porque não existe rede. É importante trabalhar na residência competências afetivas e dialógicas, porque o conhecimento é político. Precisamos trazer para a pauta a multiprofissionalidade e furar a blindagem da barreira uniprofissional e privatista do campo da saúde”, diz Paula, para quem a dimensão clínica do cuidado é indissociável da gestão. “Um gestor que não sabe cuidar do paciente é um péssimo gestor”, afirma. O caminho, segundo Paula, é estimular a mobilização. “A única saída é publicizar, ir para o debate, trazer o que está dando errado para se perceber que há uma agenda comum. Se tem algo que nos une é uma militância pelo SUS”, declarou ela na palestra central do encontro no Rio de Janeiro.
Imbróglio interministerial
A mesma lei 11.129, de 2005, que regulamentou a residência multiprofissional oficializou também que a instância que delibera sobre o funcionamento dos programas é a Comissão Nacional de Residências Multiprofissionais em Saúde (CNRMS), que já vinha sendo construída como um movimento amplo com representações dos diferentes profissionais e funções. “A CNRMS é coordenada por uma parceria entre o MEC e o Ministério da Saúde, mas o MEC assumiu recentemente o protagonismo”, explicou Maria Alice durante o evento. Ela relatou que, nos últimos anos, fortes tensões prejudicaram o andamento da Comissão. “Em 2009, sem qualquer debate público, os ministérios revogaram a Portaria nº 45, que originalmente regulava a CNRMS, substituindo-a pela Portaria Interministerial nº 1.077, de 2009, alterando a composição e a dinâmica da comissão. A representação do governo na comissão foi ampliada e os fóruns que a compunham foram deslegitimados, fragmentando a representação dos diversos segmentos”, contou. As reuniões da comissão deixaram de ser convocadas, suspendendo negociações públicas e agravando as tensões e dúvidas em relação a regulamentação, credenciamento e financiamento de atuais e novos programas.
Para Maria Alice, os principais desafios para a residência multiprofissional em Saúde são criar as diretrizes pedagógicas “consonantes com as graduações em Saúde e com o projeto do SUS que queremos”; democratizar a CNRMS; integrar as comissões de residência em Medicina e de residências multiprofissionais, uma ação a ser levada à frente pelos ministérios da Educação e da Saúde; e promulgar uma política nacional para as residências, por meio de um amplo debate.
As seleções para programas de residências costumam ser anuais, e o período de inscrições varia muito de edital para edital, podendo compreender um período de setembro a março.

Ampliação
O Ministério da Saúde anunciou, em junho, novos editais no Programa de Apoio à Formação de Especialistas em Áreas Estratégicas, que preveem a ampliação de financiamento de 4 mil vagas de residência médica até 2014 e de 3,2 mil, de residências uni e multiprofissionais. O objetivo é que a formação e a especialização dos profissionais tenha maior integração com as necessidades atuais do sistema, como explica a coordenadora da Área Técnica das Residências em Área Profissional e das residências Multiprofissionais em Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES/MS), Rosani Pagani. Hoje, 3,7 milhões de profissionais de saúde trabalham no país (nos setores público e privado), mas há concentração de profissionais em algumas regiões e escassez em outras. Rosani considera que  há necessidade de mais estudos sobre a formação tal como se apresenta hoje. “Há pouca devolutiva de pesquisa sobre o SUS”, afirmou. Paula Cerqueira concorda. “A ampliação pela ampliação não significa nada”, avalia. “É fundamental que haja um mecanismo de monitoramento desses programas”. 

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